Advogado e ativista negro da Grande SP cria projeto para defender pessoas de prisões injustas e diz: ‘é preciso democratizar o acesso à justiça’


Ewerton Carvalho criou o “Favela Forever” para defender vítimas de acusações injustas. Ativista do movimento negro há cerca de 15 anos, ele acredita que avanços no sistema judiciário e de segurança pública só serão possíveis com mudanças estruturais. Ewerton Carvalho ao lado de Kaique e da mãe do jovem, que foi inocentado pela Justiça após ser acusado de receptação
Arquivo pessoal/Ewerton Carvalho
“A nossa justiça é fortalecer os nossos”. Esse é o lema que move o trabalho do advogado e ativista do movimento negro Ewerton Carvalho, de 32 anos, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, e que ganhou destaque nas redes sociais por defender pessoas inocentes que foram presas injustamente. No Dia da Consciência Negra, celebrado nesta quarta-feira (20), ele explica ao g1 como a trajetória de vida o levou a dedicar o trabalho na promoção de justiça aos mais vulneráveis.
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“Acabei de inocentar o moleque, mano. Eu tô há três anos nesse processo”, diz o advogado em um vídeo de 2022 com mais de 2 milhões de visualizações em uma rede social.
Nas imagens, Ewerton celebra a vitória na Justiça que provou a inocência de Kaique Mendes do Nascimento, preso em 2019 no estacionamento do prédio onde vivia, no Jaraguá, na capital paulista, acusado de receptação de veículo roubado. Três anos depois, Kaique foi inocentado, após Ewerton provar que, no dia do crime, o jovem apenas comia pizza com primos dentro de um carro depois de voltar do trabalho.
Através do Direito, Ewerton conta que busca contribuir com a transformação da sociedade a partir da “democratização do acesso à justiça”.
“Já tive raiva. Hoje, eu penso de forma diferente. A força da argumentação é a mola propulsora. Luiz Gama, advogado negro e abolicionista, lá no século XIX, conseguiu fazer com que os magistrados entendessem que o escravo matava o senhor em legítima defesa. Por isso, eu acredito que possa mudar essa realidade. Acredito que podemos erradicar o racismo na Justiça brasileira e democratizar o acesso à justiça”, explica.
Foco na educação e vocação para o Direito
Nascido e criado em periferias de Mogi das Cruzes e da capital paulista, Ewerton lida desde a infância com as desigualdades que jovens negros e periféricos encaram no dia a dia. “Em Mogi, passei por muitos preconceitos. Era uma pobreza braba, correria pra sobrevivência. Em meio a muitas questões de violência, fazia parte da estatística que vive com o perigo por perto. Vários amigos foram presos, amigos foram mortos. Por isso, precisei estudar para sair daquela vivência”.
Diante de um cenário de adversidades, ele buscou na educação uma alternativa para transformar a própria realidade. O aprendizado nas salas de aula garantiram a ele a aprovação em um concurso da Marinha para ocupar o posto de fuzileiro naval. No entanto, foi no Direito que ele encontrou a vocação que já desenvolvia nas ruas e nem havia reparado: a arte de argumentar.
“Sabe o Arena MC, uma das batalhas de rima mais antigas de Mogi? Então, eu fui um dos que fundaram. A minha atividade de raciocínio rápido para agir em um julgamento eu devo muito ao rap. Quarenta segundos pra atacar, quarenta segundos pra responder. E a gente vai aprendendo a técnica de oratória, também tem a hermenêutica. Fundi as duas e coloquei em ação para trabalhar com o Direito”, relata.
Advogado Ewerton Carvalho, de Mogi das Cruzes, defende inocentes de prisões injustas
Arquivo pessoal/Ewerton Carvalho
Das ruas das quebradas ao ambiente universitário, toda a bagagem cultural e de vida acumulada por Ewerton foi importante para o início da carreira dele na advocacia. Segundo ele, “além de ser negro e periférico, ter dread e usar brinco estereótipos que podem julgar que não posso fazer um bom trabalho”.
“Tem que viver com cautela. Tem que falar bem, se portar bem. Além disso, é um universo muito competitivo, cheio de ostentação. Não é fácil competir. No início, foi muito difícil. Hoje, posso atuar no meu próprio escritório”.
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‘Favela Forever’ e a defesa de inocentes
Uma experiência particular na família fez com que Ewerton, então estudante de Direito, se conscientizasse sobre as arbitrariedades do sistema judiciário no Brasil. Quando cursava o segundo ano da faculdade, o irmão dele foi preso. A partir daí, segundo o advogado, foi possível compreender e conhecer ainda mais o funcionamento da Justiça na prática.
“Eu ia visitar ele [irmão de Ewerton] e, quando chegava na fila de visitas, o pessoal sabia que eu era estudante de Direito e fazia muitas perguntas sobre processos, tiravam dúvidas comigo. Foi assim que eu pensei em começar a ajudar muitas dessas pessoas”, conta.
Nesta vivência, Ewerton passou a se deparar com vários episódios de prisões injustas, muitas delas tendo como vítimas pessoas como ele, negras e periféricas, o que o motivou a direcionar o trabalho para combater esses problemas. Dessa forma, ele fundou o projeto “Favela Forever” — “Favela Para Sempre” na tradução do inglês.
“O Favela Forever nasce dentro do Centro de Detenção Provisória do Taboão, em Mogi mesmo. Ele surge por causa de uma deficiência do Estado em fornecer justiça aos pobres”.
Ewerton Carvalho tem o abolicionisa Luiz Gama como uma das principais referências no Direito
Arquivo pessoal/Ewerton Carvalho
Um desses casos ocorreu em outubro deste ano. Ewerton provou à Justiça de São Paulo que o pedreiro Júlio César Pereira, de 48 anos, foi preso na Zona Leste da capital após ser confundido com um criminoso de mesmo nome que estava foragido e com um mandado de prisão em aberto pela Justiça do Ceará. A vítima passou 11 dias detida no Centro de Detenção Provisória (CDP) Chácara Belém 2, na Zona Leste da capital.
Só que os erros não pararam por aí. Quando a Justiça do Ceará concedeu o alvará de soltura ao pedreiro, os dados que constavam na documentação eram do Júlio César que estava sendo procurado. Entretanto, no dia seguinte, a vítima foi solta no dia 19 de outubro.
“É desumano”, diz homem inocente após ficar preso 11 dias por ser confundido com foragido
Ewerton acredita que a ausência de mecanismos fiscalizadores facilita a frequência de erros em toda a cadeia de inquéritos policiais e processos judiciais, como o ocorrido com Júlio César. Para ele, a origem deste problema tem dimensões estruturais.
“Juiz, promotor, não têm imparcialidade. Eles têm uma bagagem de vida diferente da periferia, porque eles não vivem o Brasil real. A galera diz que o Brasil é o país da impunidade, mas isso é só pra quem tem dinheiro, quem tem poder”.
Atualmente, Ewerton concentra o trabalho em questões de direito de imagem de artistas da música e de outros segmentos, mas segue atuando na defesa de jovens negros detidos de forma injusta. O advogado avalia que o enfrentamento às injustiças cometidas na segurança pública e no judiciário está condicionado ao cumprimento do que a legislação penal prevê.
“A sociedade muda, a gente é mutável. O judiciário é mutável. Mas para isso, tem que endurecer. A gente tem que endurecer o combate [às injustiças]. Os próprios juízes, o comando das polícias, precisamos ter mais negros. Precisamos inserir mais dessas pessoas para fazer um diálogo necessário”, finaliza.
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