Boletins de injúria racial duplicam no Alto Tietê em cinco anos; mudanças sociais e conscientização podem explicar aumento


Dados da SSP mostram que, em 2022, cidades atingiram o patamar mais alto desde 2018; números do Disque 100 também evidenciam esse cenário. Presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP falou sobre o assunto ao g1. Manifestante em protesto contra o homicídio de homem negro
EPA
Em cinco anos, o Alto Tietê viu duplicar o número de boletins de ocorrência de injúria racial. De 25 em 2018, as cidades passaram para 54 registros no ano passado. Embora o número cause a impressão de aumento neste tipo de crime, a elevação pode, na verdade, estar associada às mudanças sociais e conscientização das vítimas.
É o que aponta Irapuã Santana, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP. “Por muitas vezes as pessoas podem pensar: ‘agora está muito mais violento pra população negra’. Mas se a gente conversar com as pessoas mais velhas, a gente vai ver que eles tinham que ficar calados também, porque se falasse, denunciasse, podia ter ainda mais prejuízo pra eles”.
“Acho que a sociedade vem mudando bastante. Só a gente pensar em 1980, se você fosse chamado de crioulo, estava tudo bem, nada acontecia. Hoje já dá problema. Tem certas violências que a população negra sofria há 20, 30, 40 anos, que hoje em dia ela não tolera mais”, (confira mais detalhes abaixo).
Os dados são da Secretaria de Segurança Pública (SSP) e foram enviados via Lei de Acesso a Informação a pedido do g1. O número registrado agora é o mais alto de todo esse período e reflete o aumento observado nos últimos anos. Desde 2018, a única queda foi em 2020, no início da pandemia de Covid-19.
Números do Disque 100, que recebe denúncias de violação aos direitos humanos, também refletem esse cenário. De janeiro a maio de 2023, foram registrados 18 chamados por injúria racial em Itaquaquecetuba, Mogi das Cruzes e Suzano. A maioria das vítima era mulher e a idade variava entre 9 e 89 anos.
Ainda segundo o painel de dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, grande parte das ocorrências foi na casa da vítima, em estabelecimento de saúde ou no local de trabalho. Os supostos autores tinham vínculo afetivo, agiam em grupo, eram influentes junto a autoridades ou atuavam como agentes de segurança pública.
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Apesar disso, a região não registrou boletins de ocorrência que envolviam racismo, segundo o balanço da SSP. De acordo com a legislação, a injúria racial atinge a dignidade de uma pessoa por sua raça, cor e etnia. Quase sempre está associado ao uso de palavras depreciativas com a intenção de ofender a honra da vítima.
Já o crime de racismo acontece quando a ofensa discriminatória é contra um grupo ou coletividade, por causa da raça ou pela cor. Como, por exemplo, impedir que negros tenham acesso a um estabelecimento. Neste ano, o presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a lei que equipara os dois crimes e torna a pena da injúria racial mais dura.
“Agora, dentro da legislação criminal, a pessoa vai ter que responder penalmente pelo ocorrido. A gente precisa agora analisar como isso vai acontecer durante esse tempo. Mas até nisso a sociedade evoluiu, porque conseguiu colocar de um jeito a ponto de que esse tipo de crime não fique mais impune”, explica Irapuã.
Sociedade mais consciente
Para o presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP, o aumento no indicador está diretamente ligado às transformações sociais, que cada vez mais evidenciam a importância de se debater diversidade e inclusão como um direito e obrigação de todos. Processo que levou séculos para ganhar forças e que, nos últimos anos, se tornou mais intenso.
“A gente começa ali em 2010 a falar da promoção da igualdade racial de uma maneira mais institucionalizada. Então, em 2010 a gente tem o estatuto da igualdade racial, em 2012 a gente tem as cotas raciais nas universidades públicas federais, em 2014 as cotas raciais no serviço público federal”.
“Em 2020 a gente tem a morte de george floyd. Então a gente tem visto uma preocupação maior e uma visualização maior dessa questão. As pessoas estão se conscientizando mais e tomando mais poder de seus direitos”, comenta.
O avanço da tecnologia também tem papel importante nessa luta, segundo Irapuã. Além de disseminarem informação, as ferramentas também permitem que casos de discriminação ganhem maior notoriedade e, rapidamente, entrem nas discussões do cotidiano. Dessa forma, o que antes ficaria no desconhecido, ganha a visibilidade de todos.
“Quando veio a Lei Maria da Penha a gente teve um aumento exponencial nas denúncias de violência doméstica. Aí o pessoal perguntou assim: ‘ué, antes não tinha denúncia e agora tem?’. Não. O que está tendo agora é mais notificação do que estava escondido”.
Ainda é preciso avançar mais
O advogado afirma que a legislação antirracista é robusta no Brasil. No entanto, pontua que há muito a ser feito, começando pela forma como as instituições, o que inclui as forças de segurança, aplicam o que é previsto, tanto na Constituição Federal, quanto pelas diversas legislações.
“A gente precisa fazer com que os agentes públicos realmente apliquem a lei. O que acontece na prática é que, se o agente público não aplica, fica tudo por isso mesmo”, diz. “A gente precisa, na verdade, é trazer a responsabilidade para esses agentes. Quando falo isso, eu falo do policial, falo do juiz, do promotor e, inclusive, dos secretários de justiça”.
“Num paralelo do que acontece nos estados unidos, quando acontece uma coisa muito grave, uma morte, um assassinato de pessoa negra, é o chefe da polícia que cai. Aqui todo mundo continua da mesma forma, o policial só fica uma semana em um trabalho administrativo e continua morrendo negro todo dia, toda hora”.
Para que haja justiça, é preciso ainda que a população se conscientize mais e denuncie sempre que necessário. “O primeiro de tudo é buscar todos os elementos possíveis para comprovar que aquilo aconteceu. Gravação celular, testemunha, enfim, guardar tudo. O segundo momento, a gente pode ir à polícia fazer um registro de ocorrência”.
“A gente está em 2023 e não pode continuar compactuando, deixando que essas coisas continuem acontecendo indefinidamente. [É importante] saber que as pessoas não estão sozinhas. A gente realmente precisa se acolher, se aquilombar, como muita gente fala, para poder combater esse tipo de coisa”.
Como denunciar crimes de racismo e injúria racial
Se o crime já ocorreu:
Procure a autoridade policial mais próxima e registre a ocorrência;
Conte a história com o máximo de detalhes;
Forneça nomes e contatos das testemunhas, apresente provas;
Peça à polícia que inclua no boletim de ocorrência que deseja que o agressor seja processado.
No Ministério Público é possível denunciar também:
Propaganda com conteúdo discriminatório;
Sites e grupos da internet que fazem apologia ao racismo;
Livros e publicações com conteúdos racistas;
Ações governamentais e públicas com conteúdo racista.
Acesse o canal de denúncias do MPSP.
Denúncia por telefone
Por meio do Disque Direitos Humanos, o Disque 100, é possível apresentar denúncias anônimas de racismo e discriminação.
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