O 24 de janeiro não é uma data comum em Mogi das Cruzes. Neste mesmo dia, há dez anos, cinco jovens foram assassinados, três na Vila Caputera e dois em Jundiapeba. Os amigos de infância Christian Silveira, de 17 anos; Ivan Marcos dos Santos Souza, de 20; e Lucas Thomaz de Abreu, de 18, estavam na frente da casa de Ivan, na rua Roquete Pinto, em um grupo formado por oito jovens. Eles fizeram um pedido de esfihas e aguardavam a entrega na calçada. Conversa vai, conversa vem e um Volkswagen Fox vermelho passa e para ao lado do grupo. Além do motorista, um rapaz encapuzado atira contra os jovens. Do grupo, cinco foram baleados, três foram mortos e dois conseguiram fugir sem ferimentos.
Por mais assustadora que essa história pareça, esse ataque era comum no município naquele período, entre 2013 e 2015. Vários ataques com as mesmas características aconteceram no município. As vítimas, eram sempre as mesmas, jovens de periferia.
Uma década depois da Chacina do Caputera, a história dos jovens Christian, Lucas e Ivan é contada em um livro “Chacina do Caputera”, escrito pelo jornalista Renan Omura; fez surgir o movimento “Mães Mogianas”, composto pelas mães que perderam seus filhos nos ataques sanguinários; e deixou uma ferida aberta nas famílias até os dias atuais.
Uma audiência sobre o caso foi designada para julho deste ano. Neste especial, O Diário revive a Chacina do Caputera que completa 10 anos
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Lugar errado e hora errada?
Amigos de infância, Christian, Lucas e Ivan aguardavam um pedido de delivery na frente da casa de Ivan, às 0h57, com um grupo de amigos formado por oito pessoas. Amigos de infância e com idades parecidas, os jovens andavam sempre juntos pelo bairro do Caputera.
Naquela noite, iria acontecer um show do Nego do Borel em Mogi das Cruzes, conforme relembra a mãe de Christian, Lucimara dos Santos. Como o filho trabalhava no supermercado e tinha escala para trabalhar no sábado de manhã, ele venderia convites para a festa aos amigos do bairro. O pai o buscou no trabalho. Ao chegar em casa, tomou banho e avisou a mãe que estava indo encontrar os amigos para vender as entradas. Essa foi a última conversa de Lucimara com o filho.
Minutos depois, a uma rua de casa, Christian e os amigos foram alvos de um ataque. Desarmados e sem chance de defesa, alguns dos amigos conseguiram fugir, outros foram baleados, mas Christian, Lucas e Ivan foram mortos no bairro onde se conheceram.
O boato em Mogi dava conta de que esses ataques eram sempre nas proximidades de locais de compra e venda de drogas.E que as vítimas teriam algum tipo de envolvimento com o tráfico.
Porém, na Chacina do Caputera, Christian tinha 17 anos, namorava uma jovem também do bairro, trabalhava como jovem aprendiz, tinha acabado de ganhar um carro da família e estava aguardando para dar entrada na carteira de motorista. Estava concluindo o ensino médio e também estudava no Senai. A mãe conta que o sonho do jovem era se tornar jornalista. “Christian mais parecia meu pai do que meu filho. Ele não fumava, não bebia, não tomava refrigerante, praticava atividade física. Sempre foi um menino de família, saia como qualquer jovem, mas nunca me deu motivo para desconfiar da conduta dele”, conta Lucimara.
Os amigos Ivan e Lucas faziam parte da vida de Christian desde a infância, Lucimara conta que eles estudavam juntos. Segundo ela, Lucas trabalhava em um outro supermercado, nas proximidades do bairro. Já Ivan havia passado em uma entrevista de emprego em uma padaria naquela semana e estava esperando ser chamado. “Eles sempre estavam juntos. Os dois frequentavam a minha casa. Nós mães também nos conhecíamos desde criança. Josiele morou no Caputera ao longo da vida, depois da chacina ela foi embora. Era muito normal que eles ficassem em frente à casa do Ivan, eles estavam pedindo esfiha”, lembra a mãe.
Horas depois, mais um ataque
Naquela mesma noite, após emboscar o grupo de jovens no Caputera, o veículo partiu em direção à Jundiapeba. Cerca de 2h depois, foi registrado outro ataque no município. Dois mortos, um adolescente de 14 anos e um jovem de 29, totalizando cinco mortes no intervalo de algumas horas.
Esses ataques não eram novidade em Mogi. Outros casos semelhantes ocorreram em outros dias e localidades. Dois anos depois, no dia 25 de janeiro de 2017, o Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa de Mogi das Cruzes (SHPP) divulgou a lista completa de vítimas fatais. Ao todo são 26 mortes e 41 baleados. Confira as datas, a ordem dos ataques e o nome das vítimas fatais:
- 21/11/2014: Ataque na Vila Natal matou Thiago Donizete Rodrigues Luz, Edson Moreira, Rafael Heriberto da Silva e Luiz Fernando Melo Santana. Dois deles eram jovens de 18 anos, um de 20 e outro de 29) e uma pessoa ficou ferida (idade não identificada).
- 24/12/2014: Dois ataques ocorreram neste dia, um em Jundiapeba e outro na Vila Cintra, no intervalo de 1h, seis pessoas foram baleadas, Fabiano Diogo Caetano foi morto.
- 24/01/2015: Foram registrados dois ataques durante a madrugada, o primeiro deles foi no Caputera e deixou três mortos: Christian Silveira, de 17; Ivan Marcos dos Santos Souza, de 20; e, Lucas Thomaz de Abreu, de 18; além de dois feridos.
- Depois, em Jundiapeba, o ataque resultou na morte de um adolescente de 14 anos e um jovem de 29, das duas vítimas fatais, apenas o nome de Bruno Santos do Vale foi revelado.
- 27/04/2015: Neste dia, foram registrado quatro ataques, na Vila Nova União, Kaique Rafael da Silva (no documento não constava a idade) foi morto; no Caputera, três homens foram mortos José Dias Figueiredo Júnior (38), Thiago Martins Senador (idade não revelada) e Paulo Reinaldo Rodrigues Lima (idade não revelada); No Conjunto do Bosque, Lucas Vieira da Silva (17) foi morto; e, no Jardim Universo, Kayque da Silva César (19) também.
- 27/05/2015: Em Jundiapeba, foram oito vítimas, dois mortos e seis feridos, as vítimas fatais foram Diego de Souza Gomes (idade não revelada) e Aleimar José da Silva (idade não revelada). A polícia informou que possivelmente os disparos foram feitos por dois desconhecidos que estavam em uma moto. Neste mesmo dia, um servente de 30 anos estava na avenida Áurea Martins dos Anjos, quando foi vítima de disparos de arma de fogo.
- 08/07/2015: No Jardim Universo, Marcos Vinícius dos Santos (idade não revelada), Matheus Justino Rodrigues (idade não revelada) e Thiago Nogueira Novaes (idade não revelada) foram mortos em mais um ataque.
- Outros inquéritos: Outros nomes, também sem idade revelada e sem detalhamento da localidade, foram inseridos como vítimas dos ataques pela Polícia Civil, são eles: Augusto Vieira Muniz, Bruno Fiusa Gorreira, Reverson Otoni Gonçalves, Rafael Simão de Oliveira Sarch, Matheus Aparecido da Silva e Felipe Bueno Ferreira.
Policiais envolvidos e condenados
Com a série de crimes acontecendo na cidade, as suspeitas recaíram sobre dois policiais militares que integrariam um grupo de extermínio. A investigação foi conduzida pelo SHPP, que apontou que o militar Fernando Cardoso Prado de Oliveira aparece em 7 dos 12 inquéritos policiais de chacinas ocorridas em dois anos em Mogi. Além disso, Cardoso foi indiciado pela chacina do Caputera.
Além de Cardoso, o militar Vanderlei Messias de Barros também foi indiciado pela participação nos crimes ocorridos em 24 de setembro de 2014 e no dia 8 de julho de 2015. No caso do Caputera, ele não foi indiciado.
Cardoso foi julgado e condenado por três assassinatos e uma tentativa ocorrida em abril de 2014. A pena total aplicada foi de 132 anos e 5 meses de prisão em regime fechado, enquanto Messias recebeu a pena de 85 anos e 5 meses. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, os dois policiais encontram-se presos, Cardoso foi expulso da Polícia Militar e está em Tremembé, Messias segue preso no Presídio Militar Romão Gomes (PMRG).
Referente à chacina do Caputera, o SHPP, por meio de inteligência policial, indiciou novamente o militar Cardoso, pelo envolvimento nas mortes de Christian, Ivan e Lucas. O caso tem uma audiência marcada para o dia 21 de julho, às 13h30.
Um fato curioso, é que além do julgamento que resultou na condenação de Cardoso e Messias, ambos já haviam sido absolvidos em outros julgamentos, em novembro de 2018 e em fevereiro de 2019, por suposto envolvimento em outras mortes em Mogi.
A investigação 10 anos depois
De acordo com o delegado do SHPP, Rubens José Ângelo, não foi possível identificar os demais autores do eventual grupo de extermínio. Com a prisão dos dois militares, as chacinas na cidade de Mogi das Cruzes cessaram. Atualmente, a investigação sobre o caso é praticamente dada como concluída pela Polícia Civil. “Tem poucos inquéritos, as investigações estão quase findadas, então praticamente se esgotou a investigação destes casos”, diz o delegado.
A chacina do Caputera virou livro
A história dos jovens se tornou inspiração e foi contada em um livro três anos depois, em 2018. Escrito pelo jornalista Renan Omura, “Caputera: Chacinas em Mogi das Cruzes”, foi desenvolvido como trabalho de conclusão de curso por Omura, até então, estudante.
“Todos esses jovens trabalhavam, estudavam, tinham sonhos, objetivos, todos tinham uma vida normal. Eles estavam lutando para conquistar o que eles queriam. Eles tinham muita semelhança comigo naquela época, a única diferença é que eles moravam em uma periferia, eram jovens negros e acabaram tendo este final. A ideia era mostrar quem eles eram, além dos números“, conta Omura.
Na obra, além da chacina do Caputera, Renan conta a história de outras famílias de Mogi que sofreram com esses ataques. Uma delas, é a de Rafael Simão, que estava retornando para casa, com duas barras de chocolate no bolso. Simão foi abordado e alvejado com dez tiros à caminho de casa, à luz do dia. Por conta deste caso, Cardoso foi condenado na Justiça.
Maēs Mogianas se unem por Justiça
Depois da chacina do Caputera, as mães das vítimas se reuniram e formaram um grupo chamado Mães Mogianas. Elas receberam apoio de outros grupos que foram vítimas da violência, como o Mães de Maio, movimento que luta pela justiça e memória das vítimas dos Crimes de Maio de 2006, em São Paulo.
O movimento das Mães Mogianas em busca de Justiça ganhou força, foi para outras localidades, apoiar familiares vítimas de violência. Lucimara, mãe de Christian, era uma das mais ativas do grupo, que contava com 11 mães, inclusive, teve passagem custeada pelas Mães de Maio e participou de gravações em Brasília, para a Unicef Brasil, o tema do vídeo era o número de menores vítimas da violência no país.
A vida segue?
Dez anos depois, Lucimara chora ao lembrar de Christian, fala dos momentos felizes que passou ao lado do único filho e que ainda poderia viver caso ele estivesse vivo. “Eu fico pensando, se ele estivesse aqui hoje, será que ele estaria casado? Será que eu já teria sido avó? Ele era apaixonado pela namorada. Após a morte do Christian, ela demorou três anos para voltar com a vida dela. A minha vida não voltou até hoje, na verdade, acho que nunca mais vai voltar“, desabafa
Segundo ela, o filho é o que dá forças à ela. “Eu vivo sim, eu faço faculdade, sou técnica de enfermagem, mas tudo que eu faço de bom, é na intenção de ver o Christian algum dia. De Deus me dar a oportunidade, de quando eu partir, de encontrar com o Christian. O que eu vivo hoje, a força que eu tenho, é pelo amor que eu sinto pelo meu filho. Se eu não desisti até agora, é porque a esperança que eu tenho é de fazer as coisas do jeito certo aqui e encontrar com ele”, conta.
Em datas como hoje (24), Lucimara diz que se sente perdida e luta contra os próprios pensamentos. “Deus não fez maldade comigo, mas não é fácil viver. Nessas épocas, onde se completam anos, como no dia 24 de janeiro ou o dia 13 de março (dia do aniversário de Christian), são épocas que eu fico perdida. Eu fico pensando aonde que eu errei, me pergunto porque eu não estava lá? Por que eu não liguei pra ele? Eu ligava pra ele toda noite, sabe? Por que eu não liguei? Por que eu não fui lá? Ele estava a menos de 500 metros da minha casa. Se tivessem falado pra mim que iam atirar, eu tinha ido, eu não tinha deixado ele lá”, completa.
O caso da chacina do Caputera tem Audiência Virtual de Instrução, Debates e Julgamentos marcada para o dia 21 de julho, às 13h30. Lucimara foi intimada e prestará depoimento assim como as demais partes envolvidas.
O post Chacina do Caputera completa 10 anos e tem audiência marcada para julho deste ano apareceu primeiro em O Diário de Mogi.